Depois de um mês visitando cavernas e montanhas, indo
aos lugares mais inóspitos do mundo, a gente ainda teria que reunir forças para
subir aquela montanha íngreme, passar muito acima das nuvens, para visitar os
dragões de 100 patas.
Apesar da idade e da movimentação extenuante dos
últimos dias, nós nos sentíamos dispostos.
Fizemos de vã os 150 km que separam a cidade do sopé da cordilheira. Lá
embarcamos num teleférico que me fez mudar o conceito sobre os teleféricos. A
ideia que eu tinha é que esse tipo de transporte era sempre precário e para
pequenas distâncias. Mas aquele, não. Era confortável e cobria uma distância
enorme. Pelo tempo que gastamos e pelo vento que gritava nas frinchas de vidro
e borracha, é bem provável que daria par ter ido de São Paulo ao Rio. Sobre uma
topografia revoltada, sempre. Dormi, lanchei, fui ao toalete, filmei e quando
finalmente chegamos à última estação, já estávamos muito acima das nuvens.
A visão era mística e pavorosa: o ar gelado, o céu
azul e as nuvens rodopiando abaixo como se moídas por um enorme liquidificador.
As pedras eram lisas, cobertas de musgo, e qualquer deslize seria fatalmente o
último. Durante a viagem a cabo minha mulher me perguntou três vezes se meu
seguro de vida estava em dia. Seria um
mau presságio? Perguntar sobre seguro me assusta. Três vezes me deixa em pânico.
Estávamos numa pequena estação na aba da montanha. O
guia chinês nos ordenou que fizéssemos uma fila para pegar os últimos petrechos
de agasalho e segurança. Além de receber um copo de infusão de ayahuasca e um
pacotinho de folhas de coca para mascar. Com isso ampliar a visão do insólito e
combater os males da altitude. Eu disse que havia algo de errado no pesadelo,
pois estávamos na cordilheira do Himalaia e ayahuasca e coca eram coisas dos
Andes. O guia me disse que a criação dos dragões de 100 patas, um cruzamento de centopeia com um tipo de calango andino, fora desenvolvido por um cientista
boliviano. A China, ao importar a invenção, importara também o cientista e seus
hábitos.
O guia nos avisou que ainda teríamos que andar a pé
por duas horas. Os bichos nos aguardavam num platô mais acima. Gastamos quatro. Talvez porque o grupo era misto
de adultos e velhos. Quando lá chegamos, apesar do fôlego ruim, foi um instante
de encantamento. Os filhotes, com seus 50 pares de patas, eram fofos e
lindinhos. Os futuros espinhos pareciam verrugas macias. Eram carentes e pediam
colo aos turistas. Da boca deles, de vez em quando exalavam faíscas de neon,
algo mornas, com odor de bálsamo. Já os dragões erados eram intratáveis. Sempre
de mau-humor, num sapateado frenético, rugindo e vomitando fogo. Olhamos de
longe.
A descida era por outro caminho. Entre gelos, fendas, pedras
estreitas ladeadas por ribanceiras nubladas e pontes pênseis, sobre abismos sem
fim. Num trecho de gelo feito um tobogã, fiquei auxiliando o guia a embicar as
pessoas para que não desviassem e caíssem no abismo. Todos desceram. Ficamos eu
e o guia. Por excesso de gentileza, deixei que o guia descesse primeiro. Por
algum descuido, ele desequilibrou-se e caiu na ribanceira. Fiquei sozinho e sem
ajuda. E com uma forte sensação de que
não me restaria outro destino que não o do guia chinês. E a pergunta sobre o
seguro começava a fazer sentido. Um terrível sentido.
(Publicada no jornal O Popular - Goiânia - Goiás em fevereiro de 2013).
Diz-se que o sonho é a realização de desejos... Que sonho estonteante - então, que desejo deslumbrante! Daí, que relato atordoante!
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