Todo mundo, sobretudo as pessoas que se acham em plena
forma, no auge da atividade profissional, costuma dizer que adora objetividade,
que seu negócio são as coisas líquidas e certas. Assim como dois e dois são
quatro. Talvez a atitude seja apenas um auto-engodo, um cacoete exigido pela
vida prática, criando rotinas de procedimento, a fim de cumprir as exigências
de produtividade do mercado.
Mas, no fundo, tudo na vida é incerto, a começar pela
nossa gênese pessoal, vez que viemos de uma intrincada loteria genética. Mire só no acaso que é a nossa existência
individual. Se, em determinado momento, algum ator de nossa linha genealógica,
um ancestral antigo, digamos assim, um eneavô, tivesse sofrido um revés antes
de dar sequência à prole de onde procedemos, nossa existência teria sido barrada
ali mesmo. Nosso ramo genealógico não
teria existido e nossa existência não seria sequer cogitada.
Isso num nível assim pessoal. Agora imagine no plano
dos genes. Numa única ejaculação, um homem
lança milhões de gametas no órgão reprodutor da mulher. Imediatamente esses
bichinhos tinhosos entram numa disputa fratricida para ver quem vai alcançar o
óvulo e gerar um novo ser. Os obstáculos são vários e mortais. A começar
pela acidez ambiental. Os que sobrevivem terão que enfrentar, já no útero, o
terreno pantanoso do muco cervical. Os heróicos sobreviventes dessa fase têm
pela frente a areia movediça das mucosas franjadas, já às portas das tubas
uterinas. Os pouco sobreviventes ainda enfrentam os coices ciliares nas paredes
das tubas.
O primeiro que superar a terrível hostilidade dos
cílios será premiado com um mergulho no óvulo e fecundará um novo ser. O
segundo lugar não leva troféu algum e morre sem piedade, da mesma forma que todos
os demais perdedores. Pior: da mesma forma que aqueles expelidos em sexo artesanal.
O sentimento de piedade não povoa o mundo dos gametas. Talvez, por isso é que
muitos teólogos não acreditam na piedade de Deus, porque, aos olhos dEle, seríamos
meros gametas.
Mas nosso assunto aqui é a incerteza. Cada um daqueles
milhões de gametas traz em sua carga genética um conjunto de características
que diferem das dos demais. Ou seja, você só tem as características que tem
porque foi fecundado pelo gameta que foi. Se tivesse sido por um outro, dentre
os milhões concorrentes, você seria uma outra pessoa, com outras
características, com outras digitais, com outras vocações, com outro destino. Nós
existimos por um sorteio de loteria.
Agora imagine se enquanto estou aqui no cantinho do
apartamento lucubrando este texto, um curto-circuito num outro cômodo ateie
fogo em tudo e quando eu perceber já estarei sitiado pelas chamas. Minha única
opção é saltar pela janela. Abro a cortina e vejo aliviado que bem debaixo de
minha janela tem um catador de papel com sua carrocinha lotada de material
macio. Sem hesitar, me lanço no vazio sobre a carga providencial. Posso acertar
ou não o alvo. Posso ser deslocado pelo vento, como a nossa saltadora de vara
olímpica. O catador pode puxar a
carrocinha exatamente naquele instante... E tudo estará certo como dois e dois
são cinco. Como muito bem intuiu
Cartola, de quem tomei o título por empréstimo: O mundo é um moinho.
(Publicada no jornal O Popular - Goiânia - Goiás em 29 de agosto de 2012)
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