Outras viagens



Como seria a vida se a gente tivesse a destreza para viajar no tempo, como nos velhos filmes de ficção científica? De vez em quando sair do presente e visitar o futuro ou o passado, conforme nos desse na telha? Se minha vida aos 60 fosse apenas uma dessas viagens a partir dos 15? Uma experiência que eu tivesse feito, saindo de minha adolescência para encontrar comigo já entrando na velhice, podendo retornar, quando bem quisesse, aí uns 45 anos? Encontrar minha mãe saudável e bela, meu pai ainda vivo e animado, alimentando os sonhos que nunca foi capaz de realizar. Voltar, não de mãos abanando, mas cheio de know-how e expertise, com toda experiência acumulada, com todo o conhecimento adquirido, com meus calos de vida e meus vislumbres de vivência. O que finalmente que eu poderia fazer por mim?

A propósito, em recente artigo na Folha de São Paulo, o escritor e psicanalista italiano Contardo Calligaris  tocou em algumas questões sobre o tema.

Dentre tantas, uma questão seria, se o velho em mim teria paciência com o seu dublê jovem, cheio de arrogância, imprudência, e toda sorte de devaneios. Outra questão seria se o jovem teria ouvidos para o seu duplo já velho e ranzinza, falando de coisas realistas, banais e tão chinfrins, a ponto de recolocar a vida em patamares que talvez nem valesse a pena ser vivida. 

No conto fantástico, O Outro, de Jorge Luís Borges, numa situação semelhante, o velho deixa o jovem apavorado, ao lhe revelar: Quando você chegar à minha idade, terá perdido a vista quase que por completo. Verá a cor amarela e sombras e luzes. Não fique preocupado. A cegueira gradual não é uma coisa trágica. É como um lento entardecer de verão.

Outra digressão possível é se o sujeito aos 60 anos é a mesma pessoa dos 15. Ou seria isso apenas um desvario, uma convenção civil, remanescente do arcaico direito romano com seus brocardos latinos? Penso até que, num futuro não muito distante, cada pessoa, de tempos em tempos, terá o direito e até a obrigação de retornar ao cartório de registro civil e declarar sua identidade em vigor. Tiro por mim que durante vida já fui várias pessoas. Pena que ao me sentir outro, não encontrei amparo em nenhum departamento de estado onde eu pudesse consubstanciar este meu sentimento e dele dar publicidade. E, quem sabe, até me livrar das velhas dívidas e de obrigações que me aperreiam, e que pelas quais já não tenho nenhum apego. Quem é que nunca se sentiu numa situação assim, como se tivesse nas mãos um script estranho e vivesse a interpretar um papel que já não lhe pertence?

Mas se eu voltasse aos 15, não teria surrado aquele colega gordinho, só pelo prazer de zoá-lo. Não teria deixado que o colega valentão quebrasse o meu nariz. Não teria teimado com minha mãe, nem feito malcriação com meu pai. Adotaria hábitos mais saudáveis.  Não colocaria minha vida em risco à-toa. Teria sido mais duro com quem tirarou proveito de minha falta de malícia. Talvez eu escolhesse outra profissão e não me relacionasse com pessoas que me fizeram sofrer. Talvez morasse noutro bairro, noutra cidade, noutro país, desempenhando um outro papel.

Mas nova dúvida me acode nesta hora: eu seria eu mesmo (ainda que com outra certidão civil) se não tivesse passado por todas as peripécias por que passei?  Ou já teria morrido, mesmo que biologicamente alguém vivesse como se fosse eu?

(Publicada no jornal O Popular - Goiânia - Goiás em 14 de outubro de 2012).

2 comentários:

  1. Mil possibilidades exploradas, realidades paralelas que jamais poderemos conhecer. O "se" é uma palavra tão pequena, mas encerra em si tanto medo, e tanta curiosidade... Obrigado, Mestre!

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  2. Ironia mordaz com seus belos laivos poéticos... Bravo, poeta!

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