Nossa vida de bicho

Assistindo a um documentário sobre a vida dos gnus, também conhecido como bois-cavalo, reforço o meu convencimento de que a sociedade humana, cada vez mais, vai se assemelhando às sociedades animais.
 
O gnu é um animal magrelo, mas resistente e forte. Os mais avantajados chegam a ter 2,5 metros de altura e pesar 250 kg. É dotado de cascos afiados para o coice e chifres pontiagudos para a investida. A mãe gnu vive em estado de fúria para defender a cria. Pegando de jeito, pode até matar um leão.
Vivem em manadas pelas savanas da África, os gnus. A vida em grupo visa a proteger os indivíduos dos predadores, como as hienas, os guepardos e, sobretudo, os leões. Estes os elegem como prato favorito, por existirem em grande quantidade e a carne de apenas uma presa ser bastante para alimentar a leonada por alguns dias e ainda sobrar carniça para as risonhas hienas.
O fato é que um gnu não se desgarra do bando normalmente. Gnu apartado é gnu morto. Quando os leões, em bando, rondam as manadas de gnus, os perseguidos se comprimem numa massa compacta, protegendo se uns aos outros. Os leões não têm pressa e passam horas e até dias provocando o cansaço em suas vítimas potenciais. Os gnus precisam pastar, beber água, dar de mamar, transar e fazer outras necessidades biológicas.  Quando os leões percebem um indivíduo estressado ou distraído, deslocado qualquer tanto da manada, o elegem como a próxima vítima.
Basta que a vítima seja eleita e detonada para que a manada inteira dos gnus entre num processo de distensão.  O grupo se descomprime, começa a andar, a comer capim, a fazer fila para a aguada. A vida retoma o seu normal, enquanto os leões saciam a fome de carne e a sede de sangue.
Vejo nisso algo muito parecido com o rumo que vem tomando nossa vida. Vivemos em bando, apinhados na cidade. Os bandidos nos rondam o tempo todo. Parece que no meio da manada nos sentimos, ainda que falsamente, protegidos. Temos pavor de estar sozinhos em qualquer lugar. Mesmo que não nos comuniquemos com nossos semelhantes. Eles nos servem apenas de escudo para o eventual de ataque de algum predador. E quando assistimos uma violência contra um semelhante nosso, ao invés de socorrê-lo, de nos indignar, chamar a polícia, parece até que nos sentimos é aliviados. Que a vítima da vez já foi escolhida e, como na manada dos gnus ou num jogo de videogame, ganhamos alguns bônus para viver uns dias a mais.
Pessoalmente tenho notado que sou cada vez mais um boi-cavalo.  Estúpido e irracional.  Durante toda a vida sempre gostei de ter uma referência no campo. Uma chácara, um sítio, onde eu possa ir com a família ou mesmo só, nos finais de semana e apreciar as coisas simples, ouvir um galo comandar o dia com seu canto, um sabiá emitir o seu lamento ao cair da tarde, uma perereca rapar a cuia antecedendo à chuva.
No entanto, por último venho perdendo esses prazeres ancestrais.  Chego ao sítio, logo me vem uma neura, uma paúra. Penso que a qualquer momento vai chegar um bandido, ou um grupo deles e atacar a mim e a minha família. E, como um gnu desgarrado, não terei um semelhante meu para ser o meu escudo. É vida humana: de animal. No que isso vai dar, não sei.  
 
(Publicado no jornal O Popular - Goiânia - Goiás em 28 de novembro de 2012)  

1 comentários:

  1. Eu buscava esta incomparável crônica sua, Edival. Adorei. Ela me encantou, me fez marejar os olhos com seu "lirismo comedido", feito disse, certa feita, o poeta..Bom saber que há um semelhante desse seu porte, e que não se está, assim, tão abandonado neste mundo - está-se só, mas aí já é uma outra história...
    O "gnu desgarrado" me remete, entre outros, à solidão e à dor advinda, por exemplo, da tão frágil condição de gestante, ou de idoso, ou ainda de cego, de cadeirante e tal (claro que há gozo também aí!) - certamente nunca houve uma época em que se maltratou tanto as minorias, em que quase não se cede mais, a elas, que seja um simples lugar em banco de ônibus, ou em filas de caixas, ou mesmo em um engarrafamento de carros (este, cada vez mais aviltante, particularmente em Goiânia), e assim vai...
    Talvez seja preciso passar por alguma dessas condições tão limitantes pra se entender a dor do outro.
    Na condição de "gnu estressado ou distraído, deslocado da manada", tais minorias deveriam pelo menos receber mais atenção do Estado - é o mínimo que a Ética pede.
    Mas não. Nestes por demais contraditórios tempos cibernéticos, a vítima já escolhida é mesmo razão de um irracional alívio, e então a condição humana cada vez mais se aproxima da bestialidade... Veja-se, por exemplo, a multiplicação de programas de tevê do tipo "Ratinho Livre": o populacho vive pregado na telinha exercendo sua patética reação de alívio - quem está lá no visor não sou eu; quem jaz no asfalto tórrido não sou eu - é outro o morto (é outro morto, eu digo)...Que alívio! É mesmo o outro; que se vire o outro!
    Eis aí a banalização da morte - da vida, sobretudo!
    Em psicologia convencionou-se chamar tal fenômeno (tal "alívio") de CATARSE, mera liberação de tensão, pois a ANGÚSTIA ainda continua lá, a "paúra" atávica, não obstante, permanece lá, bem no oco do sujeito...
    Um aparte: e não beira, o bravo poeta, essa condição de "gnu desgarrado, distraído" - felizmente, para o bem de todo o mundo?
    A vida merece mais que um tal comodismo tão imbecil; a vida demanda ARGÚCIA, agudeza de espírito, mesclado a um mínimo de respeito, que seja, ao semelhante.
    A receita para isso?
    Não há.
    Talvez passe pela beleza de se ter "educação de berço" - coisa raríssima de se ver hoje em dia...
    Um grande abraço, poeta Edival.

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