A fila

Sem explicar os motivos, o início do atendimento foi adiado várias vezes. Mas até que um dia começou, tumultuado, com a polícia distribuindo cacetadas aos mais renitentes para organizar a fila, que desde o início dava pra lá de meio quarteirão.  Inclusive com alguns trechos de fila dupla e uns espertinhos furando aqui e ali.  André aproveitava as oportunidades para espionar a fila. Ver se pegava uma hora em que ela encolhesse e aproveitaria para ser atendido. 

Passava na ida para o trabalho. Na volta para o almoço. No retorno ao batente e de novo ao regressar para casa. Mas a fila continuava cada vez maior. Não tinha hora nem dia, nem sol nem chuva, nem frio nem calor. Nas alturas, se caísse neve ou chovesse canivete a fila seguia crescendo. Dias passando e o período do atendimento se encaminhando ao final. E a fila nada de encolher. Ao contrário. Agora já rodeava o bairro inteiro, a qualquer hora do dia ou da noite.  Mas André insistia sondando a fila em suas passagens, na esperança de que em algum momento ela encolhesse.

André, teimoso que só, continuou vigiando nos dias seguintes. Inclusive nos feriados, sábados e domingos. Já na última semana, a fila não podia mais ser vista apenas numa caminhada. Em imagens aéreas, de helicóptero e satélite, a televisão mostrava que ela descolara do bairro, atravessara o bairro vizinho e mais outros e já adentrava a cidade contígua. 

André foi se apavorando, com a possibilidade de não ser atendido. Se pedisse ao chefe para faltar um dia, um diazinho só, para pegar a fila, ia ser descascado. O chefe é osso. Até sabia o que ele ia dizer: “Brasileiro é merda mesmo (o chefe é gringo). Deixa tudo pra última hora pra inventar motivos para faltar ao serviço.” E não adiantaria dizer que o atendimento já começou com fila grande. Mas André estava determinado. Podia até ser despedido, que não ia perder a chance. Falou com o chefe que ia enforcar a sexta. Sofreu o pito esperado e no final da quinta-feira pegou o rabo da fila, na esperança de ser atendido até domingo. 

Começou ansioso, com medo de não dar tempo. Mas depois engrenou um namoro com uma pardinha que entrou logo atrás. E a vida até que ficou bacana. Beijaram-se, comeram sanduíche, panqueca, tomaram refrigerante, água mineral caseira, picolé de água suja. Um vigiou o lugar do outro para procurar banheiro. Mas a fila era longa, os corpos foram fedendo, o namoro azedou e a moça até trocou de lugar com um fortão lá de trás, só pra sair dele. A vida voltou a ficar ruim. 

No final do domingo, já na reta de chegada, André começou a sentir uns troços. Junto com a alegria de estar chegando, um vão na barriga, uma leveza estranha. Ao se deslocar na fila, deu umas duas ou três passadas em falso. Estava levitando. Bateu de leve braços e pernas e começou a subir no ar. Não resistiu e gritou: “Estou voando! Olha, gente, estou voando!”  Quando a vertigem passou, André havia perdido a vez. Insistiu em ser atendido. Houve um começo de tumulto. Veio o policial que de nada sabia e o mandou para o começo da fila outra vez. 

Publicado no jornal O Popular em Goiânia - Goiás em maio de 2014.





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