A fauna dos novos infantes

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No Brasil rural na segunda metade do século passado, a infância era uma coisa tão diferente da que rola nos dias de hoje, que até parece que estamos tratando agora com seres de outra fauna. Um casal normalmente tinha 10 filhos ou mais. O volume avantajado da prole se justificava por várias razões. A mortalidade infantil era muito alta. Logo ter muitos filhos dava margens de segurança. Se morresse a metade ainda sobraria um bom bocado. As pessoas viviam dos músculos, do trabalho braçal. Era preciso ter muita gente para dar conta do roçado.

Não havia manual para a criação de filhos com sua psicologia errática, nem o ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente. Aliás, adolescente também não existia. O sujeito era criança ou era adulto. Mesmo não havendo manuais, havia alguns ditos populares que orientavam os pais. “Filho: quem tem dois tem um; quem tem um não tem nenhum”. Este obviamente orientava para o grande número de filhos, já prevendo as baixas.  “Trabalho de criança é pouco, mas quem perde é louco”. Justificava botar os filhos para trabalhar logo cedo. Ali pelos quatro, cinco anos os pirralhos já ajudavam a levar comida na roça, buscar água na cacimba ou no córrego, tratar dos porcos, pilar arroz e limpar ao redor da casa. “Filho não obedece, pai padece”. Orientava os pais a impor respeito. Filho rebelde caía no chicote sem dó, sem direito a ficar traumatizado. 

Filho de pobre normalmente estudava pouco. Ali pelos 10, 12 anos, frequentava uma escolinha rural por alguns meses, aprendia a desenhar o nome, a soletrar algumas palavras, pegava noção precária das quatro operações de aritmética. Pelo eventual fracasso no argumento ou na sabatina, saía com fortes marcas de palmatória nas mãos. A pedagogia não alisava ninguém.  Filho de rico era um ou no máximo dois que estudavam. O primeiro era para ser padre; o segundo, caso estudasse, seria para advogado. Costume herdado do velho coronelismo.

Com o êxodo rural, a infância ganhou novos formatos na cidade. Numa parceria matreira da psicologia do mercado com a sociologia do consumo, a velha puerícia foi dividida em primeira infância, segunda infância e adolescência – aquela parte mais entojada da juventude. Os pirralhos foram sexualizados e turbinados para o consumo. Tornaram-se as locomotivas do mercado. Tudo é feito para eles. A gastronomia, a moda, a tecnologia, a literatura, o cinema tudo ficou infantilizado para agradar aos frangos de granja. Pelo estatuto, criança e adolescente não podem trabalhar. Mas podem assaltar, matar, traficar droga, barbarizar a cidade e o campo sem punições. Não precisam apresentar desempenho na escola, obedecer ao professor nem a ninguém. Mas não podem ser reprovados nem reprimidos em seus desatinos.

Até o sentido da morte foi alterado pelo infantilismo. Antigamente, quando morria uma criança, logo se conformavam. Era apenas um anjinho que não acumulara pecados nem sabedorias. Quando morria um velho, era uma perda medonha de sabedoria embarcada.  Hoje, quando um velho morre é um descanso... para os outros. Se é uma criança, é um desespero: tinha a vida inteira pela frente - alegam.

Mas se é verdade que o trabalho enobrece e dignifica o homem, a infância se tornou ignóbil,  indigna e parasitária.  As crianças de antigamente eram magrelas e levavam vida frugal. As de hoje são glutonas e obesas; - intestino grosso do sistema.  


(Publicada no Jornal O Popular - Goiânia - Goiás, em 08 de fevereiro de 2012)

1 comentários:

  1. Um tapa na cara com luvas de pelica! As "crionças" de hoje estão mesmo muito mais próximas do que se convencionou chamar de "fauna" - melhor: "animália" (besta de carga e tal). Pobre do mundo!
    Texto com conhecimento de causa - ironia mordaz, saudosismo, lirismo...
    A geração de 50 (e até a de meados de 60) - na cidade, em particular -, conheceu maravilhas como o Canto Orfeônico (iniciativa pertinaz do grande Villa-Lobos), as aulas de Catecismo, a merenda escolar saudável (quem não se lembra dos pirulitos caseiros, em forma de bichos e mergulhados no saudável açúcar refinado daquela época...).
    Éramos crianças que conheciam o limite - tinha bomba, tinha prêmio para o 1° lugar, nem que fosse um reles livrinho de conto da carochinha; éramos - não é Edival? - o nobre intestino delgado do sistema...
    Hoje o bullying impera - e quer coisa mais imoral, e até antiética, do que não reprovar aluno?
    Meu Deus - é realmente o fim dos tempos!

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