A culpa não foi de Da Vinci


Quase me torno um inventor de tecnologia, por puro acaso. Digo por acaso porque não sou dedicado a fazer pesquisas de material, de ferramenta, de engenhoca, e invenções de um modo geral. Minha curiosidade é focada nos elementos da literatura: na trama, no perfil dos personagens, na estrutura do texto, no ritmo, na aliteração, na metáfora, na sonoridade, na composição de palavras que possam apresentar uma energia nova, uma cristalização de significados que me pareça inédita.  

Mas noite dessas quase que me torno um inventor de uma engenhoca que prometia dar uma grande contribuição aos meios de transporte. Ou pelo menos divulgador de uma nova invenção que me foi apresentada por ninguém menos que Leonardo Da Vinci. 

Primeiramente quero avisar aos leitores que não estou ficando maluco. Ou se é maluquice não é de agora.   Da Vinci me apareceu em sonho, do mesmo modo que costumam aparecer outros personagens como Machado de Assis,  Shakespeare, Proust, Jesus Cristo, Anhanguera, Nietzsche, Fernando Pessoa, Bandeira, meus avós, meus amigos, meu pai e meus parentes já mortos. Me dizem alguma coisa, dão alguma sugestão, alguma dica  ou algum conselho que à luz do dia não têm sentido nenhum. Sempre me aparecem entre fumaça ou facho de luz, com a face ligeiramente diluída pelas intempéries.  Do jeito que aparecem se vão. Deixando algum recado ou algum enigma. Já nem dou muita moral a esses eventos. Penso que o raciocínio lógico é fruto de um cérebro operando sob controle, já o sonho é fruto de um cérebro irrequieto que atua descontroladamente, sem as rédeas da vigília. Sem maiores significados. 

Primeiramente vi Juvêncio Quintino, meu amigo que se foi há muitos anos, todo fagueiro, conduzido por um estranho monociclo, por uma rua qualquer de uma cidade qualquer, talvez Paris. Fui direto ao assunto e lhe perguntei que invenção era aquela: um monociclo, com a roda oval e sobre ela uma esteira tracionada por um mecanismo movido a bateria de lítio, que lhe garantia o movimento.  Caso a bateria descarregasse, a tração poderia ser feita por pedais, como os de uma bicicleta convencional. Atingia 40 km por hora, com uma estabilidade incrível. Era leve como se fosse de papel. Talvez fosse de fibra de carbono. Muito prático: podia ser reduzido em dobras e colocado numa valise de mão. 

Juvêncio me falou que foi a última invenção, pensada e não realizada, por Leonardo Da Vinci, em seus derradeiros meses de vida, quando morou no Castelo de Amboise. Mas, na outra vida, com seu espírito irrequieto, teria desenvolvido e atualizado o invento, agora usando tecnologia de ponta. Juvêncio me chamou para conhecer o atelier do mestre. Fomos passando no jardim por seus projetos que antecederam  a muitos inventos que aí estão: um tanque de guerra, um canhão, duas máquinas de voar (uma com asas e outra com uma chapa helicoidal), tudo projetado num tempo em que não havia material para realizá-los. 

Entramos e vi a face do mestre, sem fumaça nem luzes difusas. Veio vindo, já desmontando o monociclo, para me mostrar o funcionamento interno. Da Vinci me adiantou que a bateria era carregada por energia solar, sem desgaste ambiental. Eu disse: uaau!  E foi tão alto que acordei, sem tempo de receber as devidas explanações.    

(Publicada no jornal O Popular - Goiânia - Goiás em março de 2013)

1 comentários:

  1. Hilariante! Mágico! É sempre uma leitura particularmente saborosa quando você, Edival, fala de seu processo de criação: bastante irônico, autocrítico (e também autocomplacente), sagaz e tal. Sem falar no conhecimento de causa - mesmo "divagando", tem os pés na realidade (haja vista os pormenores da vida do genialíssimo Da Vinci ). E mais: seleção vocabular apuradíssima, sem, contudo, atrapalhar a naturalidade e fluência do goianês/iporanês (não posso me furtar de destacar, também. os sempre presentes neologismos - espirituosos e de muito bom gosto).Bravo, mais uma vez!

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