A última festa de seu Beijo



No final de minha infância, meu pai ainda jovem, faleceu, vítima de mal de chagas. Minha mãe, eu e minha irmã pequena mudamos pra casa de meu avô materno, num sítio nos arredores de Iporá. Seu Benjamin, mais conhecido como seu Beijo, era um dos vizinhos que a gente frequentava aos domingos, especialmente quando nas festas de terço em comemoração ao dia de algum santo. O casal era simpático e tinha quatro filhos, três meninos e uma mocinha, muito bonita, mas não era pro nosso bico. Até porque naquela época minha timidez era tamanha que se alguém quisesse perder minha amizade era me falar em namoro.

Os terços de seu Beijo eram afamados. Ele convidava sempre o João Alves, o maior tirador de terços da região. O terço dele era inteiramente cantado, num gregoriano rural, e a ladainha enorme, numa cantiga monótona que dava sono. Inclusive uma vez, no meio da ladainha, um senhorzinho sentado na janela da sala, dormiu, caindo feito abacate, em cima do próprio rezador. Apesar da sisudez da hora, todo mundo riu. Menos o João Alves que tocou a ladainha, como se nada tivesse acontecido.  

Apesar do sono, todo mundo aguentava firme, ainda que cabeceando. É que depois dos vivas, os doces e os biscoitos eram servidos com fartura. O melhor da reza era essa parte. Aí a meninada podia a brincar de pique esconde pelo quintal ou de passa-anel, no pátio, sob o lusco-fusco do lampião.

Não demorava e o Agenorinho, outro morador da vizinhança, arrastava um tamborete pro meio da barraca, abria um estojo de onde extraía uma asmática sanfona pé de bode e executava, como quem sofresse, uma seleção de músicas antigas. O povo dançava, levantando poeira, até bem depois do cantar dos galos.  Muitas famílias começaram a ser construídas nas festas de seu Beijo.

Naquele ano fatal o filho mais velho de seu Beijo passou convidando para o terço de São João. Meu avô disse que estava sentindo uma coisa estranha, um peso no coração, como quem prevê ruindades. Ele quase não foi. Mas por insistência geral acabou cedendo.

No início da noite seu Beijo hasteou a bandeira do santo numa vara de pindaíba, acendeu a fogueira de lascas de sobro, que dá uma labareda assanhada e uma brasa boa de assar batatas. Soltou uma saraivada de fogos. Ficamos a observar o fogo, como que por fins estéticos ou sagrados.  Quando a fogueira acamou, antes de rezar o terço, seu Beijo pegou uma espingarda velha que tinha comprado,  destarraxou o catrafecho, liberou a coronha e colocou o pé do cano na fogueira, com o intuito de queimar um suposto ninho de maribondos que dentro se alojara.

Alguns minutos depois, seu Beijo pegou o cano com uma turquesa  e olhou na boca com o fundo virado pra fogueira, pra ver se já havia passagem de luz no orifício da espoleta. Foi então que ouvimos um baque. O que havia no cano era munição pesada, com enorme balaço, que entrou pelo olho e saiu na nuca de seu Beijo e ainda traçou a sanfona do Agenorinho pendurada no pau da barraca. O terço foi de luto e não houve doce nem dança da última vez.  

(Publicado no jornal O Popular em abril de 2013)    

1 comentários:

  1. O último beijo de seu Beijo... - nada como um título ambíguo e estas suas deliciosas historinhas retiradas lá do seu tão lírico umbigo, Edival! Bravo, mais uma vez!

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