O hipopótamo no berçário


Quando começou a montagem do circo na Praça dos Trogloditas, em Mundocaia, que é o ponto destinado aos espetáculos mais brutos que aparecem, ninguém reinou o que estaria por vir. Era um circo enorme. Deduzia-se pela quantidade de carretas, abarrotadas de petrechos. E vinha de muito longe, bem capaz que do estrangeiro, pois o nome era dos mais difíceis de soletrar. Cheio de k, y e até tremas em cima de consoantes. 

Minha patota de sub-suburbanos nem chegou a ir à escola aquele dia. Fomos interceptados pela curiosidade mórbida e ficamos ao redor daqueles homens fortes, pelados da cintura pra cima, desenrolando as cargas e começando a levantar os arrimos. Arriscamos a perguntar alguma coisa, sem sucesso. O pessoal se falava numa língua de estranhos e não deu atenção aos nossos questionamentos. Além de que nutria certa hostilidade pelos curiosos. A gente tinha que ficar negando das cordas que eles jogavam com golpes mais longos que o necessário só para nos atingir. Além das cusparadas que davam em nossa direção, feito pessoas criadas sem mãe.  Mas nosso desconfiômetro estava desligado pela curiosidade. Ficamos ali até depois do grupo soltar os alunos. Só voltamos pra casa quando a fome apertou.

Surpresa mesmo foi no outro dia. O circo já estava de pé e muito maior do que supunha a nossa imaginação. Chegaram carretas novas, com jaulas especiais trazendo as feras mais iradas do mundo. Agora, na Praça dos Trogloditas, o que se ouvia eram esguichos, urros e berros. Tinha ursos, leões, elefantes, orangotangos, zebras, tigres,  girafas, gnus, bisões, alces, avestruzes, sapos-de-chifre. Numas carretas com piscinas, tinha anacondas, manatis,  baleias, crocodilos e hipopótamos. Além de uma outra dotada de gaiolas, com uma bicharada surtida (iguanas, gambás, suricatos, cacatuas). 

Matamos aula de novo. Ficamos ali em volta, de queixo caído, com tanto bicho atrapalhado. Mas aí nossos pais descobriram a vadiagem e no terceiro dia fomos obrigados a retomar as aulas, não sem antes tomar uns puxões de orelha. Dois ou três dias depois o carro de som do circo incendiou a cidade com anúncios irresistíveis, desfilando a bicharada, aos berros. Alvoroçamos. Depois ficamos murchos. Ninguém de nós tinha dinheiro bastante para comprar ingresso. Murchos, mas presentes. Fomos pra porta do circo, ouvido o alvoroço lá dentro e imaginando o espetáculo. 

De repente houve um esturro feral e gritos de desespero. O circo inteiro tremeu e a aba esticou de um lado, por onde uma coisa enorme vazou correndo. Logo o burburinho deu conta de que um hipopótamo, descontrolado, passou por cima do domador, rompeu a cerca do  picadeiro, quebrou as arquibancadas pisoteando a platéia, ganhou a rua e fugiu sem rumo. Cydoidão, que tinha arrumado um bico de segurança, passou por nós bravejando que iria repatriar o bicho puxado pelas orelhas.

O espetáculo parou, os feridos foram atendidos e encaminhados aos hospitais. A polícia e o corpo de bombeiros se mobilizaram na captura e a cidade inteira entrou em polvorosa. Dia seguinte o monstro foi encontrado encolhido, olhinhos semi-abertos e de boca escancarada, num cantinho úmido do berçário da maternidade. Por várias horas passou despercebido como se fosse um cesto para descarte de cueiros.      

(Publicado no jornal O Popular - Goiânia - Goiás - em maio de 2013).

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