A agenda e os fatos

No relato bíblico da criação, Deus, angustiado por novas realidades, deixa seu gabinete virtual vai ao canteiro de obras com sua agenda debaixo do braço. As anotações são objetivas e claras. Como sua atarefa auto-imposta era tirar do mundo metafísico o mundo material e, aproveitando que não havia congressos, conselhos de patriarcas nem tribunais a que submeter-se; que não teria que tirar alvará de localização, relatório de impacto, nem licença ambiental, Deus, com seu método construtivo peculiar, foi tirando do caos os entes cósmicos: Haja céu, haja terra, haja luz!  Numa prontidão maluca. E Deus continua a sua obra objetivamente:  haja separação entre o escuro e o claro (a penumbra pode ter sido um efeito colateral),  haja separação entre as águas e as terras secas, haja seres vivos, haja o homem e haja a mulher. E haja a capacidade de replicação em todos os seres vivos, até encher a Terra. Ao final de seis dias, contempla a obra, sentido uma ponta de orgulho. Aí, diz o relato bíblico, que Deus descansou, sem ter o cuidado de nos contar qual seria o lazer predileto do Criador. Apesar da semelhança humana, com certeza, ele não foi ao templo, ou ao estádio, nem tomou cerveja. 

Nas últimas semanas vimos uma multidão angustiada pelas ruas do país, com o propósito de criar realidade nova. Todo mundo está de saco cheio de ser tratado com migalhas por um Estado sovina, quando entende que o nosso potencial de país é para uma nação muito mais decente, muito mais digna e cheia de farturas.  

Mas, diferentemente de Deus, não temos objetivos claros em nossa agenda. A gente quer muito mais protestar contra o caos do que mesmo criar um mundo novo. Poderíamos até alegar que a realidade de Deus era bem outra. Não pelo simples fato de que Ele é criador e nós, criaturas. Mas porque Deus criava na transição do caos para o mundo ordenado, do virtual para o real, do digital para o analógico. E nossa sociedade, no limiar de uma nova era, já sente as inquietações de uma transição, das mudanças do real para o virtual, do analógico para o digital. Em certo sentido, caminhamos agora no sentido inverso ao da criação primitiva. Talvez por isso saímos  para criar algo, mas sem uma agenda objetiva. Sinal da pós-modernidade, de uma situação que se aproxima e ainda não vemos o seu contorno.  Os momentos de alta transição são sempre temerários. A situação não é uma coisa nem é outra. Não é claro nem é escuro, mas uma penumbra, de um jeito que nem o relato bíblico previu. 

Em 2000, em busca de mudanças, nossos hermanos argentinos fizeram um movimento semelhante ao nosso, em que rechaçavam todos os políticos, partidos e  instituições. Queriam, com seus panelaços, botar pra correr toda forma de poder constituído. Sem apresentar sucedâneos. Esse movimento de reivindicações difusas abriu espaço para o neo-peronismo dos Kirchner (Nestor e Cristina), uma forma de populismo nacionalista retrô, que já parecia varrido da cena política argentina. 

Apesar da transição em andamento, ainda vale a velha máxima: quem não sabe aonde vai não vai a lugar nenhum.  Ou pode ir para um lugar pior do que o lugar contestado. O movimento precisa clarear sua agenda, como o Criador primitivo. Reivindicação social não é um software do tipo Windows em que se acha o caminho por tentativa e erro.  É preciso conceber previamente. 

(Publicada no jornal O Popular - Goiânia - Goiás em julho de 2013).

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