Na embriaguez do trivial





Em maior ou menor grau, quase todos somos portadores de pensamento mágico diante das pílulas de estricnina que a vida nos oferece. Esse pensamento nos acode sempre que deparamos com alguma adversidade. Sempre que ocorre um acidente ou tropeço em nosso caminho.
 
 Quando o acidente é de pequena monta, a gente diz que deu sorte. Exemplo: em vistoria a uma obra, você leva uma queda entre uma base de coluna em que os ferros estão expostos em forma de espetos e uma valeta de mais de cinco metros de profundidade. Por pouco você não tenha levado umas chuchadas ou caindo no buraco, pondo a vida em risco. No entanto, foi apenas susto e escoriações sem gravidade. 

É então que entra em cena o pensamento mágico, de moderada gradação. E você sai todo espigaitado, contando pra todo mundo, que teve uma sorte danada, que por pouco não tenha sofrido um acidente de graves proporções.  

Viram como a magia do pensamento já inverteu a realidade dos fatos. O sujeito acha que teve sorte levando uma queda, quando na realidade, se quisermos dialogar nos termos do imponderável, ele teve foi azar.  Um azar comedido, que poderia ter sido bem pior. Sorte seria mesmo não ter ocorrido nenhum incidente de risco.  Mas só o incidente de risco é capaz de levar você a pensar que poderia ter sido pior e que ainda saiu lucrando. A sorte pura e verdadeira, aquela que não lhe deixa sofrer nenhum susto, não é capaz de suscitar a ideia de bem-estar. 

Digamos que na suposta queda tenha perfurado a barriga, atingido vísceras. E ao desvencilhar-se da estrepada tenha caído de ponta-cabeça na vala, esmagando algumas vértebras, com segmentação da medula. Ao tentarem removê-lo, muita terra caiu em cima, a ponto de que só não pensou que morreria enterrado vivo, porque estava desacordado.  A ambulância demorou a lhe buscar. No hospital de urgência não havia médicos disponíveis, nem especialistas para os múltiplos traumas. 

Apesar da demora e do atendimento precário, você sobrevive e se torna um cadeirante disposto a superar. Descobre os esportes paraolímpicos e se torna um desportista internacional. Nesse caso, o pensamento mágico recebe reforço. E o azar, que era sorte, agora é promovido a milagre. Você sobreviveu pelo milagre de uma santa que nem conhecia, mas aquela tia carola fez promessa a ela e você caiu na graça e sobreviveu. E até descobriu novas razões para continuar vivendo, com mais alegria. 

Assim, quando temos um pequeno azar, dizemos que foi sorte. Se sofremos  um azar de grande monta, dizemos que fomos agraciados com um milagre. Se nada nos acontece, ficamos depressivos e entramos em parafuso. O que quase ninguém percebe, a não ser alguns poetas, é que a verdadeira sorte e o verdadeiro milagre estão acontecendo a todo instante na ausência de fatos inusitados, na embriaguez do trivial. No sol-nascente, no transcorrer do dia, na semente em eclosão, no voo do pássaro, no sussurrar do vento, no sorriso da criança, nas lembranças do velho, no tambor do coração que nos mantém vivo, apesar de tantas ameaças nos espreitando das sombras ao redor.  E ainda dizem que os poetas é que não têm os pés no chão.

(Publicada no jornal O Popular - Goiânia - Goiás em agosto de 2013).



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