As dores do morto

Quando perdemos um amigo ou parente, sobretudo se o parente é amigo, temos a sensação de que não há dor maior no mundo. A gente mobiliza todos os músculos e veias, todos os ossos e sangue, todos os neurônio e medula, todas as emoções e forças para converter em dores. Dói das pontas do cabelo às unhas dos pés. Doem a pele e as vísceras, e as lágrimas vertem como salmouras sulfúricas.

Sim. Temos a pretensão de afirmar, de berrar aos quatro ventos cardeais, que a dor de ninguém rivaliza com a nossa. Seja em tamanho, seja profundidade. Talvez tenhamos pretensão de que portamos a dor maior do mundo porque não temos a empatia de nos colocarmos no lugar do morto. Temos a paixão, mas nos falta a compaixão de ver as coisas do ponto de vista dele.  Pois acredito que, por maior que seja a nossa dor, por mais fechado que seja o nosso luto, a dor do morto será sempre maior do que a nossa.

É por uma questão de lógica, até. Por questão de quantidade. E por que não, de qualidade também. Quando perco um parente ou amigo, estou perdendo apenas uma pessoa e as circunstâncias dela. Já o morto está perdendo a mim, e à centena de outros amigos e parentes e as circunstâncias específicas que viveu com cada um deles. E mais: quando perco alguém estou perdendo algo que são exteriores a mim. Não perco minhas penas, não perco meus braços, meus intestinos e cérebro. Embora muitas vezes tenhamos a sensação de que nada disso valha mais à pena. 

Já o morto, não. Suas perdas são amplas e radicais. Ele perde os bens externos a ele (os amigos, os bens materiais, os sonhos, os hábitos, os vícios), não um só, como os sobrevivos, mas todos. Perde os valores inerentes também, como o corpo inteiro que agora vai entregue de brinde às bactérias saprófitas no intestino da terra. Perde a própria materialidade e se torna um software fantasma, sem suporte algum, solto no éter universal.  As minhas perdas comparadas com as do morto (qualquer morto) são meros caraminguás existências. 

Num primeiro momento, a nossa dor pode até servir de consolo ao morto. Talvez perceba que nós o queríamos tão bem que ele nem supunha em vida que fosse tão querido assim. Pode haver situações inversas em que o bem-querer agora não passa de lutas fratricidas entre herdeiros. Mesmo assim ele está vivo na lembrança.

A nossa dor, o nosso luto fechado, tende a se amainar com o tempo. Até porque temos que continuar dedicando aos que ainda não morreram. Afinal, o nosso ciclo de relacionamentos não é feito só de pessoas mortas, mas também de pré-mortas.  Só não sabemos se morrerão antes ou depois de nós.

Algum tempo depois, a dor do morto tende a ter um repique. É exatamente quando a nossa dor estará amenizando. Ele, em profundo desalento, percebe que está morrendo de novo. Desta vez na memória dos sobreviventes. E que depois dessa segunda morte, em definitivo não lhe restará qualquer lugar no mundo. Nem mesmo nas vagas lembranças daquele velhinho mais caduco.     


(Publicado no jornal O Popular - Goiânia - Goiás em outubro de 2013) 




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