Jacuba maranhense

Tivesse eu não perdido o dom da indignação, outro dia teria me indignado com uma reportagem que vi pela TV. Uma cena explícita de “estupro social”: numa escola pobre do interior do Maranhão, era servida às crianças, a título de merenda, uma mistura asquerosa de farinha de mandioca, raspa de rapadura e borra de café. Tudo diluído em água. Água por certo sem tratamento.

O fato me remeteu imediatamente a minha infância, em Iporá. Quando a cidade não tinha asfalto, água encanada, luz elétrica nem esgotos. E tremendas voçorocas rasgavam a cidade de cima abaixo, impedido o trânsito de qualquer veículo. Fosse a motor ou a tração animal. E para se transitar a pé, só mesmo descendo ao fundo dos buracos ou sobre algumas pinguelas de casqueiros, providenciadas pelos moradores. Na entrada da cidade um engraçadinho instalou uma placa: Visite Iporá antes que acabe.

Não é pelo estado geral da cidade que a cena do interior do Maranhão me puxou pelas memórias da infância. Mas porque eu também costumava ingerir jacuba. Embora a minha fosse mais pobre; não tinha borra de café. Morava na zona rural e levantava muito cedo. A única coisa que minha mãe conseguia me dar pra comer antes de ir pra escola era farinha com rapadura e água. Algumas vezes o café era mais suntuoso: ovo frito. Com farinha de mandioca.

Quando comecei a estudar, havia merenda na escola. Bem ralinha. Na verdade era só um meio copinho de leite de sabor enjoativo. Vim a saber mais tarde que o leite procedia dos Estados Unidos da América. Pelo programa Aliança para ao Progresso. Numa iniciativa social da primeira dama Jacqueline Kennedy.

Antes que a gente acostumasse com o sabor, o leite acabou. Cada um que se virasse com sua merenda. A maioria se virava sem merenda mesmo. Que era o meu caso. Isso trazia conquências desagradáveis. Eu era da turma que desmaiava de fome nos ensaios e nos desfiles de Sete de Setembro. E era muito zoado por causa disso.

Certo dia fui com um tio-avô ao campo de pouso para conhecer o avião da Central do Brasil, que uma vez por semana descia para deixar encomendas e pegar os diamantes extraídos do Rio Claro. Dentre as coisas que me chamou a atenção, estava lá o motorista da prefeitura, nosso conhecido, pegando umas sacas enormes, cheias de alguma coisa, direto da barrida do avião. Perguntei a meu tio, que era vereador, o que era aquilo. Me afirmou ser leite para as escolas. Oba, então nós vamos ter leite de novo, eu disse. Meu tio me fez baixar o facho: O leite vai pra fazenda do prefeito para engordar os bezerros, falou sem alterar a voz. Parece que era verdade. O leite da D. Jaqueline nunca mais nos foi servido.

Voltando à jacuba maranhense, parece que um dos propósitos mais evidentes dos políticos é explorar o povo até a exaustão e mantê-lo dormente pelas necessidades. O Maranhão é um estado que abriga um dos políticos mais poderosos e longevos do Brasil contemporâneo. No entanto, seus índices de desenvolvimento humano estão entre os piores do País. Aquela jacuba asquerosa servida aos pequeninos nas escolas é apenas a cristalização das mazelas de um poder  implacável, exercido sem limites, sem alternância nem contestação. 

( Publicada no jornal O Popular - Goiânia - Goiás em outubro de 2013)

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