Os fatos e o sentido

Há um poeta brasileiro, do século 19, nascido no Rio de Janeiro, que anda meio esquecido, chamado Francisco Otaviano. Ele é um pouco anterior a Olavo Bilac. Dentre seus poemas, há um célebre, de uma verdade Shakespereana, que se chama  Ilusões da Vida. O poema é bem pequenininho e diz o seguinte: Quem passou pela vida em branca nuvem,/e em plácido repouso adormeceu;/quem não sentiu o frio da desgraça,/quem passou pela vida e não sofreu;/foi espectro de homem, não foi homem,/só passou pela vida, não viveu. A agudeza de seu poema está em perceber o quanto o ser humano é um bicho estranho, que só identifica a situação das coisas por comparação.

Ou seja, só consigo perceber se uma pessoa é gorda porque eu conheço uma outra magra; só sei se alguém é alto porque conheço alguém nanico; só sei que alguém é pobre porque ouvi falar da fortuna de Bill Gates. 
Quando levamos esse modo de ver as coias para o jeito como percebemos a vida, nosso método ganha tons de tragédia.  Isso quer dizer que você não vai encontrar ninguém feliz por ter feito uma viagem em que foi, demorou o tanto que quis e voltou, sem sofrer nenhum arranhão. Você não vai encontrar ninguém que esteja de bem com a vida apenas porque não está sofrendo de câncer nos ossos nem porque seu intestino funciona como um relógio. 

É muito mais fácil você encontrar alguém que esteja feliz e até com certa euforia, porque foi fazer uma viagem e no caminho foi abalroado por um caminhão desgovernado numa curva, na montanha, caiu numa ribanceira, passou três dias perdido, com os membros quebrados. Por sorte foi achado em coma e sobreviveu por milagre, num hospitalzinho remoto, sem recursos. A situação de nosso personagem é muito mais incômoda do que se tivesse feito a viagem sem qualquer incidente. No entanto, o fato de ter passado por situações altamente perigosas e de haver sobrevivido é capaz de lhe proporcionar uma alegria absurda, da qual não teria como usufruir sem ter passado por tais perrengues. 

Eu, você, ninguém é capaz de ter regozijo por levantar cedo, olhar no espelho e lembrar que nada está doendo, que os olhos veem tudo com nitidez, que o coração  pulsa com regularidade, que o corpo está em plena forma, se não escultural mas pelo menos com todas as funções que dele se espera.  Mas se você teve câncer nos ossos, amputou as duas pernas e sobreviveu pelo beiço de uma pulga, aí, sim. Você é capaz de encher o coração de alegria e até de agradecer a Deus pela sorte de estar vivo e lhe agrada imensamente o fato de ter mais um dia pra viver. É um presente sem igual no mundo. Uma coisa que dinheiro nenhum paga.

Mas antes de nos deprimirmos diante da vida normal, antes de pensamos em fazer uma besteira com nossa vida ou sair por aí fazendo barbaridade só para impregnar a vida de sentidos, não seria melhor que nosso coração  se alegrasse pelo simples fato de estarmos vivendo um momento de paz sem a necessidade de ter percorrido os vales da morte e da tribulação?  Mas como nos diz o peta em sua verdade humanamente incontestável: quem não sentiu o frio da desgraça,/quem passou pela vida e não sofreu;/foi espectro de homem, não foi homem,/só passou pela vida, não viveu.  É assim: a vida só ganha sentido depois do sofrimento. Uma pena!   

(Publicada no jornal O Popular - Goiânia - Goiás - em outubro de 2013)

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