O cerrado e a alquimia da chuva

Muita coisa que a gente pensa que mudou, na verdade não mudou nada. O que mudou foi apenas o diagnóstico.  O câncer, por exemplo. Se a gente não observar direito conclui que a doença se alastrou de uns tempos para cá. Que antigamente eram poucas as pessoas afetadas. Mas agora é difícil passar uma semana sem que a gente saiba de um amigo ou um parente diagnosticado com a tal moléstia.  Antes, o diagnóstico era sempre tardio e soava como sentença de morte. Hoje é apenas um aviso de que é preciso travar uma luta com todas as armas e forças para debelar o inimigo. 

Na realidade, o que mudou (para melhor) foi a forma de identificar e tratar o problema. Quando a gente pensava que a doença era menos, muita gente morria de nó nas tripas, de anemia radical, de caroço em algum lugar do corpo que não cedia às rezas da benzedeira nem aos  berros de “vade retro, satanás!” do espancador de demônios. As pessoas morriam de doenças misteriosas, talvez praga de padre ou de madrinha contrariada. No fundo eram de crescimento desordenado das células e suas ramas maléficas lançadas no organismo. Hoje são mais de uma centena de tipos catalogados dessa doença. Mas na verdade a incidência dela não aumentou. Apenas melhorou a forma de identificação. 

Mas há uma coisa que mudou de verdade. Não foi apenas o diagnóstico. Me refiro ao nosso sistema de chuvas. Na verdade o diagnóstico melhorou muito. Dificilmente uma previsão do CPTEC/IMPE acaba em furos.  Antigamente, previsão do tempo era mais na base da chutometria e da adivinhação do que mesmo do tratamento de dados científicos. As previsões eram tão erráticas que se costumava dizer: no tempo das águas, até previsão de sol é sinal de chuva.  

Mas o que mudou mesmo, pelo menos em minha modesta percepção, sem aferimento científico algum, é o jeito de como a chuva acontece agora em nossa região. Tenho a impressão de que no tempo de eu menino, as chuvas que nos regavam não dependiam de frentes frias vindas da Argentina, de deslocamento de massas de ar tropical importadas da Amazônia, de zona de convergência do Atlântico Sul, nem outros fatores engendrados fora do bioma cerrado. O cerrado em sua inteireza e eficiência dava conta, sozinho, da alquimia da chuva. 

Com vegetação rasteira, torta, cascuda, de raízes profundas, o cerrado dava conta de injetar a água da chuva nas esponjas da terra. Água que era distribuída com parcimônia farta pelas veias cristalinas que irrigavam os campos o ano inteiro. As raízes recobravam a umidade do chão, jogando pelas folhas o vapor no ar para a manufatura de novas nuvens, sem produtos importados. Chuva mansa, doméstica, fininha e prolongada. 30 dias ou mais sem interrupção. Chuva carinhosa, coada em névoa e som sem fúria que parecia impregnar na alma da gente um estado de sonho. Sonho bom feito colo de mãe. Era quando se comia milho cozido e batata assada nas brasas da lenha colhida na seca. Com o desmatamento as chuvas não respeitam a nossa índole. São ferozes, acidentes pluviométricos de elementos extraviados de regiões distantes. O desmatamento é o câncer do cerrado.    

(Publicada no jornal O Popular - Goiânia - Goiás em novembro de 2013)
     

2 comentários:

  1. Parabéns por essa bela Crônica amigo Edival Lourenço, para mim isso tudo é o resultado da Dona globalização juntamente com a Senhora tecnologia, de um certo ponto de vista isso é bom, mas por outro lado está indo embora as coisas simples e pura de nossa menice... Chuvas que vinham sem avisar, que regavam o nosso chão, e para nós era uma felicidade ser banhados por ela sem ao menos gripar....As crianças de hoje em dia não pode nem pegar vento frio que já ficam resfriados!! Agora bateu saudades do meu tempo de infância..... Abraços

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  2. Parabéns por essa bela Crônica amigo Edival Lourenço, para mim isso tudo é o resultado da Dona globalização juntamente com a Senhora tecnologia, de um certo ponto de vista isso é bom, mas por outro lado está indo embora as coisas simples e pura de nossa menice... Chuvas que vinham sem avisar, que regavam o nosso chão, e para nós era uma felicidade ser banhados por ela sem ao menos gripar....As crianças de hoje em dia não pode nem pegar vento frio que já ficam resfriados!! Agora bateu saudades do meu tempo de infância..... Abraços!

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