A última folia de reis de Geraldo Lourenço

Meu pai era folião de reis. Começou adolescente, como palhaço. Passou por todas as posições. Fazia todas as vozes, tocava todos os instrumentos. Tinha de cor os cantos e o momento exato de entoá-los. Dançava catira, tirava terço e leiloava prendas. Sabia afinar os instrumentos. E eventualmente até consertar os defeituosos. Na verdade, alguns ele mesmo fazia, como o zabumba, o pandeiro, o pífaro de taboca com embocadura de cera e o reco-reco de canoinha e mola de arame. Mas reconhecido mesmo era como o embaixador de voz possante e afinada.    

Naquele ano tive a felicidade de acompanhar meu pai a folia inteira. Desde a saída da casa do alferes Augusto Silvério, até o imperador ou festeiro Odilon Pereira, ambos na fazenda Macaco. O giro cobriu uma área enorme: regiões da Pindaíba, Santo Antônio e Canoas, além da fazenda Macaco, município de Iporá. 

Uma chuva fina, quase névoa, caía sem intervalos desde o início de dezembro. As trilhas das fazendas eram pura lama escorregadia. Especialmente na região do Macaco, de terra massapé. Nos sete dias de giro meu pai teve crises. Algumas vezes lhe faltou fôlego e sua voz entrecortava. Corria em seu auxílio o sobrinho, também folião, Zé Lourenço. Esta é uma lembrança viva em minha memória, como se tudo tivesse acabado de acontecer. Mas lá se vão quase cinco décadas. Era 5 de janeiro de 1965. Num esforço extraordinário, meu pai superou as fragilidades da saúde, fez a entrega da folia, por glória e honra do Menino Jesus e dos Santos Reis, os magos do Oriente: Belchior, Gaspar e Baltazar. Depois do terço, ainda viriam o catira, o leilão das prendas, a comilança e o arrasta-pé até o amanhecer. 

Mas, no alvoroço, meu pai me passou a lanterna e disse: vai lá no piquete e pega o Pedrês, e vamos embora. Não me sinto bem. Joguei um baixeiro nas costas para amenizar a chuva, fui ao pastinho, enfiei o buçal na cabeça do cavalo e vim puxando pelo cabresto. Meu pai, um vulto triste à luz do lampião, já me esperava na casa dos arreios. Arriamos o cavalo e partimos, por volta da meia noite. Meu pai me jogou na garupa, montou no arreio e nos cobriu com a capa de feltro. Eu não vi mais nada, o burburinho ficou abafado e foi sumindo à medida que nos distanciávamos. 

Agarrei-me à cintura de meu pai. Senti-me seguro e próximo a ele como nunca me sentira antes. A escuridão sob a capa, o som abafado da chuva, o sono, a andadura, o cheiro forte de suor do cavalo misturado ao odor de fumo que exalava de meu pai me deram a sensação de que eu entrara num mundo amoroso e mágico. Como se recolhido num útero. Talvez um útero mais tosco. De pai é que era. 

Havia momentos em que a cavalgadura escorregava das quatro. A destreza de meu pai com a rédea soerguia o cavalo e o aprumava novamente, dando sequência à viagem. Apesar dos escorregões e solavancos, chegamos ilesos, no alvorecer. Minha mãe assustada viu que havia algo de errado. Meu pai falou da fadiga, do fôlego curto. Soltei o cavalo enquanto minha mãe acendia o fogo para fazer um chá. E meu pai mal supunha que na próxima folia já estaria morto, devorado pelo mal de chagas, antes dos 40 anos. O sobrinho Zé Lourenço herdou a folia e gira até hoje.


( Publicada em O Popular - Goiânia - Goiás em janeiro de 2014)  

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