A seca que se alastrou por último veio escasseando todos
os meios de sobrevivência. Acabou com a plantação, os animais, os sonhos. Nem
calango se achava mais. Nonato deixou o sítio no agreste e caiu no mundo em
busca de recursos pra acudir a mulher, os sete filhos e o cão Lambada, um
exímio caçador de calangos. Quando calangos ainda havia.
De cima do
pau-de-arara, Nonato olhou penosamente a paisagem pela última vez. Os filhos abanaram
as duas mãos, a mulher ensaiou um beijo murcho e fez cara de choro. Não caíram
lágrimas por falta d’água. O cão Lambada, escorado na cerca de varetas tortas,
uivou sofrido. A paisagem de casa foi sumindo e o retirante entrando em um
mundo novo, cheio de pavor, com algum tempero de esperança. Não importaria o
que acontecesse: assim que levantasse um dinheirinho voltaria para socorrer a
todos. Enquanto isso haveriam de sobreviver como Deus era servido.
Nonato foi se enfiando Amazônia adentro. Lugar de
exuberância e verdor, onde a seca se dá, não por falta d’água, mas de compaixão.
O deserto não está no clima, mas nas almas. Só bem tarde percebeu. O gato (dono
do pau-de-arara) entregou Nonato (agora, peão do trecho) numa madeireira
clandestina. O novo patrão mandou passar no armazém e abrir uma conta. Tudo o
que usasse seria descontado do ganho. De seu salário mindinho, que é o justo
ali na região. Assinou o caderno, pegou banha, feijão, arroz, charco e sal.
Faria um banquete pra começar animado. O do armazém lhe avisou pra pegar folhas
de serra e alavanca. Tudo era por conta do peão. Tudo mesmo.
Nonato pegou no serviço, cuidando para não estragar as
ferramentas. Rolava as toras sobre o carrinho da serraria, grampeava, ajustava
as serras, empilhava as madeiras já beneficiadas. Com muito cuidado. Seu
sentido estava lá no sítio, com a família comendo na tábua. Seria competente
para responder às precisões.
A vida nova era
feita de trabalho duro com banhos de rio ao fim da tarde, sempre acompanhado
por capangas e o filho do patrão, armados até os dentes. Certa vez salvou o
moço de um afogamento. O moço agradeceu e suplicou que não contasse ao pai.
Disse que o pai o espancaria se soubesse dessa fraquejada.
Pelas contas de
Nonato, dois meses se passaram e o patrão não dava sinais de fazer pagamento.
Nem pra ele nem pros outros braçais. Certo dia calçou a cara, enfrentou a
carranca do patrão e perguntou pelo pagamento. O patrão simplesmente mandou que
procurasse o responsável do armazém pra ter uma idéia de como estava sua ficha
de deve/haver. Sua ficha estava afundada no deve. Três vezes mais do que o
haver. Estaria sempre prisioneiro daquela condição. Comentou com os colegas. Eles
também já suspeitavam da roubada. Nonato, como que munido de
representatividade, resolveu inquirir o patrão que sacanagem era aquela.
O patrão não era de alisar. Pior que casca de pereba,
se diz. Para dar exemplo, mandou amarrar
o rebelde de comprido na tora serrando, com o gancho das pernas virado pra
fita. Quando a serra já lhe roia a roupa, quase dilacerando as ferramentas da
virilha, veio correndo o filho do carrasco, aquele que lhe deveria ter dívida
de gratidão. Inadvertido, Nonato ainda gritou: lembra que te salvei do afogamento?
0 comentários:
Postar um comentário
Obrigado por comentar. Logo que eu puder, libero e respondo o seu comentário.