O policial de vocação congênita

Tem gente que passa a vida inteira pensando o que vai ser quando crescer. Começa vários cursos e abandona para fazer outro, de área diferente. E, às vezes, quando finalmente conclui o curso, vai trabalhar noutra coisa que nada tem a ver. Assim mesmo faz um serviço meio encolhido, sonhando que poderia ser outro. Gente assim nunca vai sentir-se inteiro numa carreira profissional. 

Para quem vem ao mundo com uma vocação congênita a vida é muito mais fácil. Eu mesmo, nunca tive dúvidas. Sempre quis ser policial. Minha mãe conta que, desde pequenininho, o meu brinquedo preferido era ser polícia. Ela diz que meus irmãos, primos e amiguinhos brincavam com carrinho de boi de sabugos, de fazer boiadas com ossos de suã de cabrito, carrinho de lobeira, jogar bola de meia, carrinho de rolimã, bola de gude, briga de galo, finca, pião, essas coisas. Comigo era diferente: meu brinquedo era ser polícia. Não me distraía com mais nada. Amarrava uma fita de pano na cintura, enfiava entre ele e o cós da calça um pedaço de pau como cassetete e alguns sabugos como revólveres e saía pei!, pei!  disparando o trabuco e matando bandidos. A pessoa que eu alvejasse tinha que cair. E tudo mundo já sabia disso e caía. Quem fugisse desse comportamento eu partia pra cima com tudo com meu cassetete e descia o mutambo. Todo mundo achava mais fácil cair com o tiro do que se livrar de minha fúria e meu cassetete feroz. 

Meus pais e tios tinham que me vigiar o tempo todo porque senão eu machucava os outros meninos. E até os adultos. Pior era quando eu elegia algum objeto ou animal como o meliante. Quebrei várias cabaças d’água de meu pai, na cacetada. Matei muitos leitões e cachorros novos. Os pintinhos que eu elegia bandidos morriam fatalmente trucidados. Meu pai manifestava preocupações. Temia que eu pudesse vir a ser um adulto violento e problemático, porque quando eu batia nas pessoas ou matava animais, não mostrava sinais de pena, nem arrependimento. Antes, sentia um contentamento excitado. Minha mãe achava que com o tempo eu ia me ajeitar. Me tornar um menino de bons modos, do jeito de meus outros irmãos. 

Fui problema na vizinhança e na escola. Aliás, qualquer coisa de ruim que acontecia na comunidade, sem qualquer indício ou prova, eu era logo apontado como o autor da façanha. Na escola quebrei o nariz de muitos guris metidos a besta e surrei professoras arrogantes. Fui expulso de quase todas as escolas que frequentei. Mas do meu propósito de ser polícia nunca abri mão. 

Quando atingi a idade e os pré-requisitos, me tornei naturalmente um policial. Odeio serviço burocrático. Minha alegria é estar na rua, no combate direto com a bandidagem. Gosto de confronto, de trocar tiros, de surrar um neguinho até ele mijar sangue, do jeito que eu fazia com os bandidos inventados de minha infância.
E quando sou chamado para atender a uma ocorrência, é certeza de que alguém vai sair surrado. Sou implacável com os bandidos. Mas se eles me escapam, não perco a viagem. Provoco as vítimas até elas desacatarem minha autoridade. Aí eu desço o cacete nelas, sem dó. Comigo é assim: chamou tem adrenalina.  

(Publicada no jornal O Popular - Goiânia - Goiás em 11 de fevereiro de 2014).
   


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