O circo Transalém chegou a Mundocaia com
o alvoroço de sempre: as carretas de tranqueiras e coiseramas, os
contêineres de macacos e animais ferozes. Durante uns três ou quatro
dias foi aquela movimentação na Praça dos Trogloditas, que é a reservada
para o circo, a tourada, o for-mula-cross, o racha, o homem da cobra, o
cuspidor de fogo, o engolidor de espadas, o dorminhoco em cama de
pregos e outras doideiras.
Agora era a vez do circo Transalém na
Praça dos Trogloditas. Minha mãe me prevenira muitas vezes para nunca
nunquinha beirar aquela praça. Pra ela aquilo era uma reserva do coisa
ruim, lugar de se aprender o que não deve. Mas como o circo chegou, não
pensei duas vezes. Para ser franco, não pensei uma vez sequer.
Matei aula no grupo, me juntei à patota e fomos fazer serão à beira das
cordas que separavam os curiosos do local de onde o circo levantava
lentamente, com o trabalho suado daqueles homens musculosos, sem camisa.
Dizem que o padre falou na missa pras mães não deixarem as filhas
olharem àqueles homens com jeito de vitrine de açougue. Eram, no dizer
dele, o começo da perdição pras mocinhas ainda mal formadas.
Finalmente ficou pronto o circo.
Ganhamos a confiança do encarregado que nos deixou espiar por dentro.
Era o troço mais grandioso do mundo. O picadeiro, as arquibancadas, as
estacas que iam varando o céu, os cabos de aço coisa de doido, o globo
da morte enorme, o trapézio vertiginoso sobre o vazio. Um cenário de
magia. Tudo encoberto por uma lona novinha em folha.
Valeu o nosso esforço. Fomos
selecionados pra divulgação. Recebemos carimbo na testa que nos garantia
entrada de graça na estréia e lá fomos nós atrás do palhaço das pernas
de pau, fraque e cartola, cuja copa quase encostava nos fios mais
bambos. Fomos gritando a toda prega “tem sim, senhor!” entre o homem
varapau e o elefante puxado por um anão de pernas zambas, que se parecia
a um tracajá empinado.
Nesse tempo vivia certa moça em
Mundocaia que se chamava Serena. A confiar nos mais velhos, ela fazia o
papel principal nos sonhos dos homens do lugar. Embora não desse bola
pra ninguém. É que uma cigana lera em sua mão que ela estava reservada
para um homem hábil e muito especial que haveria de chegar voando dentro
de uma bolha de encantos.
Daí pra ela cair de amores pelo
trapezista foi um salto. Quando o circo foi embora, Serena foi junto. A
família disse que ela foi ter vida de rainha. Já os rapazes se sentiram
roubados e diziam maledicências: bilau de trapezista é só um fiapo. Não
dou nem um ano pra Serena voltar. Se era só um fiapo ou não a gente
nunca soube. Mas Serena não voltou, como previsto.
O fato é que o Transalém só retornou a
Mundocaia 20 anos depois, numa situação precária: o leão urrava de fome,
as arquibancadas rangiam, a lona parecia recém saída de uma chuva de
granizos ou de uma intifada de palestinos.
O antigo trapezista tivera uma crise de
labirintite e fora rebaixado a atirador de facas. A belíssima Serena,
que já nem era mais bela assim, era o seu alvo e fazia poses com visível
indiferença. Não fosse um certo terror no olhar de que numa hora
imprópria a labirintite voltasse a atacar o marido, com severa
interferência na pontaria das facas.
Amei.Os olhos me marejam.
ResponderExcluirBrava mundanidade! Intrépida goianidade! Raríssima "goianeidade" (goiana idoneidade).
Linguagem apuradíssima. Poesia pura feito amor de pai e de mãe. Sabor de infância bem vivida.
Compaixão pelos bichos e tolerância com o bicho-homem - o poeta Edival grita no deserto, feito "o leão urrava de fome" no decadente circo.
Belíssima Serena blasé - a do conto e a da postagem...
MUNDOCAIA - ao Mundo Novo calhe (cale) seu maravilhoso rego d'água, poeta!
Em ti, fada, Edival.
Parabéns!